Uma constatação no momento presente é a de que,
desde os anos 80, o cinema perdeu o status político que tinha nas décadas de
50, 60, principalmente, e na de 70. Havia uma vontade de conscientizar platéias
e, com o cinema, mudar o mundo. Na Argentina, Fernando Birri (Mi hijo El Che), Fernando Solanas
(no seu antológico Hora de los hornos:
Notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación,
1968, Perón: La revolución justicialista,
1971)), no Chile (Miguel Littin), na Italia (Francesco Rosi, Elio Petri, entre
tantos), no Brasil (Glauber Rocha, Ruy Guerra...). A indústria cultural de
Hollywood engoliu, porém, a cinematografia italiana, por exemplo, e o ímpeto
transformista perdeu o seu ânimo, ainda que existam, atualmente, vozes isoladas
que clamam por um cinema de denúncias, a exemplo do americano Michael Moore. Ir
ao cinema, nos efervescentes anos 60, era um ato político, e o travelling, segundo Godard, uma
questão de moral.
Descendente de imigrantes gregos e
palestrinos, o chileno Miguel Littin, que esteve há poucos meses no Brasil
para o lançamento de Dawson Ilha 10,
pode ser considerado uma das reservas morais do bom cinema político
latinoamericano. Seu cinema é um cinema de denúncia, sim, mas sem apelar
para o panfleto, e sempre à procura de um tom para a disposição de sua
fabulação. Salvador Allende, o presidente que foi assassinado durante o
golpe em setembro de 1973, foi quem o indicou para a direção da companhia cinematográfica
Chile Films, depois do grande sucesso alcançado por seu primeiro longa O Chacal de Nahueltoro,
de 1969, que causou grande impacto na sociedade chilena por denunciar a
situação de marginalidade dos homens do campo.
Com a intervenção armada, patrocinada por Kissinger
& Nixon, Littin se viu obrigado a abandonar o seu país, levando nos braços
os negativos de La tierra prometida,
cuja finalização somente foi conseguida em território cubano. Um homem de
esquerda, portanto, um cineasta enragé,
mas que, nos seus filmes, demonstra a ideologia por meio do poder de
convencimento de suas imagens. Uma característica bem acentuada de suas
constantes temáticas é a recriação de fatos reais para mostrar, sempre, a
opressão sofrida pelo seu povo. No exílio após a ascensão de Pinochet,
estabeleceu-se primeiro no México e depois na Espanha. A sua carreira
cinematográfica, no entanto, ainda que enfrentando muitos obstáculos,
continuou, chegando, inclusive, a ter, em 1981, seu filmeAlsina e el condor indicado
para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Miguel Littin, num ato de bravura e coragem, apesar
dos conselhos dos amigos, que o desestimulavam, resolveu voltar ao Chile e
durante dois meses, escondido, conseguiu filmar a vida de seus compatriotas sob
a opressão de uma ditatura sanguinária naquele que é talvez a sua obra-prima: Acta general del Chile. A
experiência, inclusive, virou tema de um livro-reportagem do colombiano Gabriel
García Márquez, que escreveu nos anos 80 A
aventura de Miguel Littín clandestino no Chile. Feito com a colaboração
de equipes estrangeiras, Acta
general del Chile resultou numa película em duas versões: uma de
quatro horas, para ser exibida, em partes, na televisão, e outra, de duas
horas, para o cinema.
Cineasta do figurativo, realista, que
procura, em seus filmes, ser fidedigno ao real que reconstrói, o cinema de
Miguel Littin , sobre conter um potencial ideológico e de denúncia de um estado
de coisas, prende-se mais ao elo semântico do que ao elo sintático
(compreendido este como a linguagem, a maneira de o realizador articular a sua
narrativa). Antes de passar o recado em
suas obras, Littin persegue a consciência da verdade, a exatidão dos fatos
narrados, ainda que reconstituídos. Um western marxista, como Atas de Marusia (Actas de Marusia,
1975), é exemplar nesse sentido. No México, além deste, realizou mais quatro
filmes de sucesso e iniciou, junto com Luis Buñuel e outros
cineastas, um movimento para afirmação de uma identidade para o cinema latino-americano,
de que resultou o Festival do Cinema Iberoamericano de Huelva.
Segundo palavras de Antonio Skarmeta, "Miguel Littín teve uma vida
excepcional como criador de uma filmografia marcante na história
cinematográfica latino-americana. Ele esteve permanentemente comprometido com
uma visão autêntica de questões e personagens chilenos, utilizando-se de uma
linguagem original e bela. As críticas nacionais e internacionais avaliaram seu
trabalho algumas vezes e indicaram-no para Palma de Ouro, em Cannes, e para o
Oscar em duas ocasiões."
"Seu filme El
Chacal de Nahueltoro é uma inquestionável obra-prima na história da
cinematografia mundial e ainda hoje é considerado como uma importante forma de
militância contra a pena de morte nos centros internacionais judiciais,
universais e políticos que discutem a causa."
Em Dawson
- Ilha 10, uma co-produção entre Brasil (leia-se José Walter Lima e sua
produtora VPL), Chile e Venezuela, baseado no livro Isla 10, de Sergio Bitar, que
foi aprisionado na ilha quando do golpe de Pinochet no Chile, Littin procura
mostrar o sofrimento de ministros e ex-colaboradores de Allende que foram
aprisionados na ilha após a intervenção militar. Mas o que poderia ter
resultado num filme maniqueísta, ainda que a notória aversão do autor à
ditadura instalada, desdobra-se numa espécie de estudo de comportamentos de
homens numa situação-limite, procurando sempre o viés do humanismo. Afinal de
contas, Littin vê todos os seus personagens como chilenos que se debatem numa
desumana guerra civil. O acúmulo de personagens, todavia, faz com que o filme
se disperse e se dilua, perdendo, com isso, uma maior estruturação psicológica
dos alguns personagens chaves, como o arquiteto, interpretado pelo baiano
Bertrand Duarte (O homem que não dormia, O Superoutro), o próprio Bitar,
feito pelo ator chileno Benjamin Vincuña, entre outros. Em alguns momentos, o
acúmulo citado prejudica a clareza da exposição.
Há, por outro lado, momentos de humanismo, quando
um soldado oferece uma fruta a um dos prisioneiros, a se ver no gesto, a
solidariedade e, ao mesmo tempo, a brutalidade a que foram conduzidos chilenos
obrigados, mesmo sem vontade explícita, a representar o papel de opressores. Ou
na cena em que o sargento pede ao arquiteto para ir buscar um presente que sua
esposa lhe mandou - um pote de geléia com pão - e ambos, sentados na escadaria
da igreja, solidarizam-se no compartimento do alimento. Ou, pouco antes, quando
os dois pulam na escada da igreja reconstruída e riem como crianças. No campo
de concentração da Dawson, cada prisioneiro é despersonalizado e recebe o nome
de Ilha. O nome do filme, Ilha
10, refere-se ao nome do prisioneiro com este número, que é o ministro
das Minas e Energia, Sergio Bitar, que, quando na ilha escreveu um diário no
qual Littin se baseou para fazer o filme.
Entre a narrativa e a fábula, Miguel Littin, em Dawson - Isla 10, dá mais
impulso à segunda, e a utilização dos elementos da linguagem cinematográfica é
feita de um modo suave a fim de que o aspecto figurativo do real seja preponderante.
A beleza da ilha é flagrada com especial sentido de composição pela iluminação
discreta de Miguel Littin Ioan (filho do diretor). Mas como ressalta o seu pai:
"A presença visual de três níveis de realidade é uma parte fundamental da
narrativa de Dawson Ilha 10.
Passado, presente e futuro fazem parte de uma mesma verdade: dignidade. Isso
aparece através da presença humana no primeiro nível da história. A verdade se
torna evidente através de uma fotografia que olha para o ser humano com uma
aproximação lúcida. Realismo, mas não naturalismo. Busca e recriação, não é
imitação sem expressividade. "Se história conta o heroísmo diário daqueles
que resistiram e derrotaram a pressão, a abordagem visual deve ser rigorosa e
de acordo com a natureza do relato."
Dawson Isla 10, no cômputo
geral, é um filme que não pode ser perdido. Se já saiu de cartaz nas principais
capitais, em outras está sendo lançado (em Curitiba, por exemplo) e já vai sair
em DVD pela Imagem.
André Setaro - Crítico de
cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba)
Site: Terra
Magazine