Entre
a pintura, o
teatro e o cinema,
o anti-realismo
expressionista
alemão
A Cara do Outro Mundo
Um caixa de banco que desvia dinheiro e parte numa
desesperada busca de sentido numa cidade de pesadelo – casas de apostas, bares
e corridas de bicicleta com seis dias de duração; no final ele se mata numa
sala do Exército da Salvação. Da Manhã à Noite (Von Morgens bis Mitternachts,
direção Kalheinz Martin ou Karl Heinz Martin, 1920) foi realizado no mesmo ano
de O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, direção Robert
Wiene, 1920), mas não chegou a ser lançado para o grande público – teve algumas
projeções particulares e uma pública em Tóquio, de onde a única cópia conhecida
ressurgiu das cinzas. Dietrich Neumann distingue Da Manhã à Meia Noite de
outros filmes expressionistas como Genuine (direção Robert Wiene, 1920),
realizado apenas como uma tentativa mercadológica de imitar Caligari. Trata-se
de uma adaptação da peça teatral homônima de Georg Kaiser e vai muito além do
simples caligarismo. Enquanto Caligari utilizou uma narrativa-moldura com um
ponto de vista realista para justificar a atmosfera de sonho, Meia Noite já
está num mundo de fantasia desde o começo (1).
Um caixa de
banco e a estrada
expressionista para
o calvário
Na época, o crítico de arquitetura Heinrich de Fries
descreveu o cenário de Meia Noite como um espaço abstrato, sem utilização das
leis da perspectiva ou efeitos de luz e sombra (elemento considerado típico do
Expressionismo no cinema), apenas a impressão de superfícies de fundo. O espaço
enquanto uma entidade passiva, sem vida própria e inativa. Neumann explica que
o cenógrafo Robert Neppach (que também era um homem de teatro) e o câmera Carl
Hoffmann intensificaram o aspecto pictórico da arquitetura. Cenários uma
mistura e cenários pintados e construídos que se combinam com os personagens.
Rudolf Kurtz, em Expressionismus und Film (1926), descreveu as figuras dos
personagens como fragmentos que abandonaram sua forma orgânica e se tornaram
elementos do cenário, sendo dilacerados por feixes de luz que foram pintados
neles. As diferenças entre os motivos dramáticos de O Gabinete do Doutor
Caligari e Da Manhã à Meia Noite deixam claro que o cinema expressionista não
obedecia a um conceito estilístico consistente, em cada realização tendendo a
apresentar hipóteses individuais. Na contracorrente, Lotte Eisner coloca Meia
Noite na mesma categoria de Genuine, como uma tentativa artificial e repleta de
clichês do caligarismo (2).
Prevendo o Futuro?
Se os personagens
loucos do expressionismo
pressupunham o Nazismo,
o
que pressupõe o cinema
enlatado atual?
Em 1921, o poeta e autor expressionista Ivan Goll
(1891-1950) descreverá Da Manhã à Meia Noite como o primeiro filme
“expressionista cubista”. Paisagens e objetos desproporcionalmente ampliados ou
encolhidos, o mundo visto a partir de um caixa de banco alucinado e homens
gritando como loucos. Na opinião de Goll, apenas o cinema seria capaz de
transpor a alma do protagonista para os objetos, as formas e a atmosfera da
cena. Apenas o cinema conseguiria fazer vibrar num ritmo descontínuo os homens
e as coisas, reduzir o mundo ao de um pobre diabo que busca do lado de fora
aquilo que não existe dentro dele.
Em 1923, Goll voltaria ao assunto para dizer que só existiam
na Alemanha três filmes expressionistas: Caligari, Da Manhã à Meia Noite e A
Casa Lunar (ou A Casa Voltada para a Lua, Das Haus zum Mond, 1921?) – este
último não tem uma cópia conhecida. Em seu livro Rudolf Kurtz insistiu que o
Expressionismo fazia eco aos tempos modernos, onde um culto a figura do líder
(Führerpersönlichkeit) que exprime a dependência por parte das massas seria um
“complemento” da mecanização da vida – Kurtz cita três personalidades da época
(líderes?), Henry Ford, Lênin e Mussolini (3).
Kracauer incluiu
Da Manhã à Meia
Noite na temática
dos filmes de rua
Segundo Bernard Eisenschitz, Kurtz transforma o gesto de
revolta na origem do Expressionismo (claro tanto na peça de Georg Kaiser quanto
no filme de Karlheinz Martin) numa apologia desse culto ao líder, lembrando
estranhamente os excessos do Futurismo italiano. A sugestão de Kurtz encontrou
um campo fértil na hipótese de Siegfried Kracauer. Em 1947, ele escreveu um
livro para mostrar que o cinema alemão da década de 20 do século passado
prefigurava Hitler. Kracauer encaixou Da Manhã à Meia Noite dentre os filmes
que giravam em torno da temática da rua. Nesses filmes invariavelmente, afirmou
Kracauer, o personagem principal abandona as convenções sociais para agarrar a
vida, mas elas se provam mais fortes que ele e o forçam à submissão ou ao
suicídio. Kracauer concluiu que tais filmes constatam que os poderosos
dispositivos coletivos sentiam a urgência da retomada do comportamento
autoritário. Da Manhã à Meia Noite seria o primeiro desses filmes (4).
Teatro Filmado Expressionista?
“O mundo está
aí, seria absurdo
reproduzi-lo”
Kasimir Edschmid
(1890-1966) (5)
Os princípios do expressionismo pictural foram estabelecidos
antes da Primeira Guerra Mundial por figuras como Ernst Ludwig Kirchner,
Vassili Kandinsky e Franz Marc com seus movimentos A Ponte (Die Brücke) e O
Cavaleiro Azul (Der Blaue Reiter). Propunham a recusa de toda imitação do real,
a rejeição do naturalismo e do impressionismo, assim como apontavam para uma
exacerbação da subjetividade, a liberdade de reinventar a forma a cada momento e
o excesso como modo de operação. Mas o Expressionismo é mais uma visão de mundo
do que um movimento com programa definido. A literatura e o teatro alemães,
pelo menos aqueles que renegavam o dogma realista e evocavam obsessivamente a
decrepitude e a morte, uma visão mórbida da cidade como cenário por excelência
da decomposição social. Ainda que se aproximasse tardiamente desse processo, o
cinema alemão, por sua vez, se apropriaria dele de tal forma que tornaria quase
impossível o reconhecimento de sua origem na pintura. Contudo, apenas três ou
quatro filmes alemães poderiam reivindicar expressamente essa estética. Na
opinião de Jean-Pierre Berthomé, o único que surgiu de um pensamento
autenticamente expressionista seria Da Manhã a Meia Noite. Na verdade, Kalheinz
Martin se contentou em filmar a peça de Georg Kaiser, apresentada alguns anos
antes. Os cenários (assim como o figurino e a maquiagem) anti-realistas
apresentam traços toscos e desajeitados (6).
A partir de certo
momento, o próprio
teatro expressionista
começaria a se deixar
inspirar pelo cinema
expressionista
Como explica Gerald Köhler, a montagem da peça de Kaiser em
1912 era bastante próxima de uma adaptação cinematográfica, inclusive o texto
correspondia à lógica da montagem. A técnica expressionista de iluminar
parcialmente o palco era parecida com os ajustes de câmera ao deixar visível
apenas uma parte do espaço da atuação. A posição final na primeira parte da
peça, que servia como o local de um grande monólogo, foi considerada
particularmente expressionista e visionária, ao estilo de Franz Marc. Quando a
versão para cinema foi realizada por Karlheinz Martin (que também era um
conhecido homem de teatro, que teria sido levado para o cinema por influência
de Neppach) (7), foi o ator expressionista Ernst Deutsch que atuou como
protagonista – houve inclusive certa influência do cinema expressionista,
inspirando cenários para peças de teatro no início da década de 20 (8). Uma das
teses para explicar o sumiço de Da Manhã à Meia Noite foi o debate na época
sobre a necessidade ou não de manifestações expressionistas que permitissem que
ele fosse mais facilmente aceito na sociedade – a velha questão de “facilitar”
o entendimento. Sendo assim, os donos da indústria cinematográfica alemã se
desinteressaram pelo filme logo que foi lançado, devido ao seu radicalismo
talvez pouco palatável (9).
Fonte: Blog Cinema Europeu
Nenhum comentário:
Postar um comentário